domingo, 23 de setembro de 2012

Os que não mergulham vos contemplam



Crónica urbana da revista 2 do Público, publicada no dia 16 de Setembro

Se o tempo não tiver ainda mudado e a cidade não se tiver enchido de agasalhos e outros aborrecimentos; se o início do ano escolar não tiver imposto horários demasiado limitativos e o sol continuar a aquecer o ar e os corpos – então é provável que os moços e as moças da Ribeira continuem a parecer indivíduos à margem das convenções do mundo e das amarras do medo, lançando-se da velha ponte de ferro para mergulharem no Douro a despeito da cidade e dos quotidianos movimentos que se produzem ao seu redor. Medem com o olhar a distância que vai do topo do varandim da ponte ao fio de água do rio, pulam, agitam os braços como se fossem voar, mergulham e, logo após, regressam à superfície como heróis gregos, quase imortais. Nadam até à margem e saltam outra vez. A tarde toda e como se permanentemente necessitassem de demonstrar a sua coragem ou estivessem viciados no perigo do mergulho belo e louco que executam.

Cerca de doze metros separam o tabuleiro inferior da Ponte Luís I do rio. Somando-se a altura das protecções laterais de vigas diagonais cruzadas, trata-se de um mergulho para aí de catorze metros, em direcção a uma superfície de água escura e sem fundo à vista: uma vertigem. Minúsculos e frágeis corpos circulando entre as três mil toneladas de ferro da travessia, os moços acrobatas parecem não temer coisa nenhuma. Os rapazes mais velhos apresentam-se de calções de praia e, às vezes, saltam imitando os atletas olímpicos, de cabeça para baixo e os braços abertos como improváveis aves. As raparigas de pernas curtas pulam com a roupa que trazem de casa, calções, camisolas, sapatilhas e tudo, e encolhem um pouco as pernas antes do impacte na água. Regressam à margem logo a seguir e vêm a correr em passinhos miúdos, todos juntos e a pingar, proferindo palavras ásperas e deixando um rasto húmido no granito do chão. O sol brilha-lhes no corpo e, se o mundo não lhes pertence, parece que ao menos a ponte é uma prancha de saltos ali posta apenas para sua recreação, apesar dos autocarros passando, das buzinas dos automóveis e da circulação do metro lá mais acima, de onde não se enxerga nada.

Se alguma hesitação estorva o primeiro mergulho, espécie de baptismo ou ritual de iniciação, os seguintes sucedem-se apenas com o intervalo necessário para ir na correnteza e voltar. Os moços e as raparigas agarram-se às vigas de ferro, sólidas, quase num abraço que lhes permite sentir o calor que o metal irradia, e trepam outra vez, desafiando-se. Arrastam-se pelo grande corrimão e mergulham outra vez e mais outra, indiferentes às proibições, à cobardia e ao medo, bem como às histórias daqueles que se magoaram a saltar, ou pior do que isso, e sem que nenhum adulto as vigie ou desencoraje. São, nesse sentido, crianças e adolescentes de um outro tempo, exactamente os tais “bandos de pardais à solta” de que fala uma canção.

Os turistas detêm-se para fotografar os estranhos acrobatas e, às vezes, aplaudem e dão-lhes moedas. Sorriem nervosamente (o tamanho do vazio que há entre a ponte e a água impressiona e arrepia). Depois vão-se embora, para visitar as caves, capturar o postal ilustrado da cidade no cristal líquido das câmaras fotográficas ou comprar souvenirs na pequena feira que se estende na margem de cá. Vê-se tudo perfeitamente a partir da esplanada que tomou a base da antiga ponte pênsil, entre pequenos mergulhos dos lábios na acanhada lagoa do porto tónico.