domingo, 29 de julho de 2012

Viagem no tempo no eléctrico 22


Crónica urbana da revista 2 do Público, publicada no dia 22 de Julho

Julho, há 25 anos, ainda era tempo de praia em Matosinhos. Nove da manhã e já estávamos na paragem que havia no topo da Avenida da Boavista, junto à remise em cujos terrenos se construiu a Casa da Música. Apanhava-se o eléctrico 19 e descia-se a avenida até ao mar, sempre em linha recta, para um dia inteiro ao sol. Agora, porém, quase já não há carros eléctricos no Porto, e os poucos que ainda existem passam com pouca frequência, praticamente sem préstimo para a função de transporte público. São coisa pitoresca para turista ver e fotografar. Ou calhadas para uma viagem no tempo, para uma incursão na cidade que ainda resiste ou que vai desaparecendo, conforme a perspectiva a partir da qual se queira contemplar as coisas através da janela de guilhotina do 22, que vai do Carmo à Batalha e volta.

Dentro do carro eléctrico está tudo na mesma: o guarda-freios em pé, junto do qual sempre algum passageiro se deixa ficar a tagarelar, a iluminação com lâmpadas incandescentes enroscadas no tecto em grupos de três, o longo cabo de couro que se puxa para accionar a campainha que solicita a paragem, os manípulos metálicos presos ao tecto por tiras de couro, os bancos alaranjados e reversíveis, o ruído do motor que faz uma espécie de dong-dong-dong-dong-dong, o pedal metálico que, percutindo no chão, faz as vezes da buzina – tudo como se fosse outra vez 1987.

Do lado de fora, descendo da Cordoaria, avistam-se, pela janela aberta para refrescar o ar, sinais de uma cidade que já quase se não usa. Há a Torre do Clérigos, incontornável, mas também as espantosas e anacrónicas sapatarias da Rua da Assunção, uma retrosaria, uma loja de “artigos de cemitério”, o Bazar Central, a Casa das Luvas, a outrora notável Livraria Moreira, o Café Astória renascido no luxo do Hotel Intercontinental, a gare de S. Bento e a proverbial Igreja dos Congregados (a cuja porta há sempre quem esteja a pedir); a estátua de um ardina apoiado a um velho marco do Correio e, subindo para Santo Ildefonso, entre as montras vazias, devolutas, a Ourivesaria e Joalharia Âncora, a Barbearia Santo António (que mantém o nome do antigo topónimo da actual Rua de 31 de Janeiro), a fachada que resta da Vicent, a Livraria Latina, o Cine Águia d’Ouro transformado em hotel, o Cinema Batalha ao abandono, grafitado, o Orfeão do Porto e, no fim do percurso, a chamada Muralha Fernandina.

Depois viram-se os bancos para o outro lado, o guarda-freio passa de uma ponta para a outra do eléctrico, e lá vamos outra vez passando pelo Café Java, pela Casa Sonotone e pela agência automobilística Belita, mas também pela Euro Bangla, pelo Café Restaurante Uludãg, pelo Bazar Israt e pelos outros sinais de que a Baixa já não é o que era, apesar do Majestic, do Rivoli, do Teatro Sá da Bandeira, das perucas do Cardoso Cabeleireiro e do Café Ceuta, da Leitaria da Quinta do Paço, dos Armazéns do Castelo ou do pavão na fachada dos Armazéns Cunhas (“Vendemos mais barato”).

Ronronando, devagarinho, o eléctrico regressa ao ponto de partida na Praça de Parada Leitão. De um lado está a Igreja do Carmo, com o imponente painel de azulejos voltado a nascente, e, do outro, a estátua de Ramalho Ortigão, o das farpas políticas a um país que, século e meio depois, não está, afinal, tão diferente como parece: “Aproxima-te um pouco de nós, e vê. O país perdeu a inteligência e a consciência moral. (...) A ruína económica cresce, cresce, cresce. As quebras sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo”. Era 1871 e, a bordo do 22, entardecia.